Maenza Diego - A Estrutura Da Oração стр 7.

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Mandei o miúdo ao mercado para fazer compras. Sinto a sua ausência e tento combater o desejo com uma oração, mas ao estar ajoelhado, as palavras ficam-me presas na garganta. Desta vez não consigo rezar. Levanto-me, tomo um duche de água morna, e preparo-me para o receber o mais arrumado possível.

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O menino finalmente chega, mas infelizmente vem acompanhado pela menina Raquel, uma mulher prestativa à disposição da Igreja, jovem, apesar dos seus quase quarenta anos, solteira, apesar da sua beleza. Atrás dela entra uma comitiva de senhoras que se juntaram para me fazer uma visita e oferecer-me frutas, compradas precisamente, imagino, à bela solteirona. Tomás cumprimenta com latidos de indignação. Recebo-as com aparente agradecimento, dando-lhes, com a autoridade que me conferem, algumas advertências, mas também uma ou outra tarefa para a preparação da procissão de amanhã e despeço-me delas de forma delicada alegando o pretexto do meu repouso. Fecho a porta atrás delas, com o gume de ferro bolorento e dobradiças enferrujadas, e vou ao encontro do rapaz por toda a casa.

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Convido-o uma vez mais a entrar no meu quarto. Mantemos uma conversa sobre certos aspetos teológicos que ele debate com leve consentimento. Instruo-o enquanto pouso a minha mão aberta sobre a sua apetitosa coxa carnuda. Incentivo-o a fazer uma oração em conjunto. Coloco-me atrás dele e juntos proferimos o nosso pedido habitual. Sinto o calor do seu corpo que abafa o frio do ambiente e, ao mesmo tempo, refresca o ardor das minhas entranhas.

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O corpo vence-me. Deito-me com o sabor das frutas ainda patente no meu paladar. Ensaio uma oração que se derrete na tentativa. A minha cabeça está em outro lugar, na figura do miúdo. Dirijo-me com passos cambaleantes até à sua porta. Entreabro-a e vejo o seu corpo adormecido no prazer da sesta numa postura fetal com um belo traseiro a apontar na minha direção, convidando-me a acariciá-lo, a dar-lhe uma dentadinha definitiva. O meu corpo gelado ferve de febre ou de algo mais. Numa explosão de lucidez, volto para a minha cama.

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Acordei com a viscosa sensação do suor colado à minha pele. Observo o brilho do sol da tarde que se reflete no espelho e inunda o quarto com o seu resplendor, invadindo cada esquina. Entendo a necessidade de me lavar, pois uma onda de calor invade o quarto e as minhas virilhas estão pegajosas. A febre já passou. Imploro por um pouco de água fresca.

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Enviei as indicações aos fiéis por escrito para a procissão da sexta-feira santa. O menino foi a minha companhia enquanto escrevia a mensagem que depois encarregou-se de entregar, estimulado pela promessa de ensinar-lhe uma parte do quadro. Não consegui conter o meu interesse dos seus movimentos, o meu olhar recaiu sobre ele a todo o momento. Fez-me até desviar a caneta em algumas características.

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A caixa do disco possui como capa a imagem de um caminho cercado por folhas outonais que se perdem num horizonte sugestivo. A passagem amarelada atravessa um bosque de absoluta gentileza. Nenhum pássaro estraga a tranquilidade. Nenhum animal se atreve a profanar a serenidade do pequeno universo de folhas e terra. Todos estão escondidos para, de forma fogosa, inaugurarem um paraíso infernal. Coloco o disco no aparelho, obrigando-o a girar rapidamente. Aquela geringonça transforma-se num minúsculo turbilhão infinito que gira a milhares de rotações por minuto. A música invade a sala, muito lenta, como se estivesse a lutar por acordar de um sono imposto por forças restritas, inalando sossego, absorvendo silêncio, mantendo-se no espaço que depois ocupará com a sua tonalidade imperial. Mas será o frio. O baixo marca o ritmo, prosseguindo de forma contínua, jorrando com um crescendo que matiza as tímidas intervenções dos violinos: são os passos do caminhante a quem pressiona alguma tribulação, são os rangidos do gelo a ponto de quebrar-se. Agora, soam os raios queimados pelo violino solista, o tormento da orquestra ruge e agita o espaço e vibra aos pés do desgraçado. A competição começa com o impulso do baixo que pulsa com insistência e marca rapidamente as pegadas. A imposição magistral do violonista principal invade, atingindo com as suas rajadas de vento gelado, e o intenso frio obriga a tremer e impõe o ranger de dentes.

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Estás a ver esta zona aqui, e mostra-me a parte superior do lado direito da pintura aberta. Todo o quadro simboliza os suplícios do pecador. Mas esta parte daqui, especificamente, é a imagem tópica, usual, que fazemos do inferno. Enxofre a cair numa chuva contínua, montanhas destruídas e cobertas de escuridão e pessoas num sofrimento indescritível.

Nesta zona, mostra a parte central com o dedo indicador desenhando uma elipse, o gelo marca um grande contraste com o fogo de enxofre, porque dentro da conceção do inferno como lugar de tortura eterna, um espaço de gelo é um dos lugares mais horríveis. Vê como se racha aqui e o pobre homem fica à mercê da água fria.

Nesta parte, mostra a inferior, está aquilo que na arte chamamos de inferno musical, devido à utilização de instrumentos musicais como símbolos de tortura. Muito comum em certos pintores místicos. Estás a ver esta gaita, mais para aqui está o alaúde, aqui está a harpa. E aqui, uma flauta. Consegues ver?

Questiono-o se o inferno é mesmo assim. Pela janela noto que já é de noite.

Bom, diz-me, o desespero e o martírio, de certeza que estão bem representados pelo autor, e aqui sobre este quadro, por parte do imitador, que é um intérprete, como prefiro chamar-lhe.

Pergunto-lhe como é que vê o inferno através do que diz a sagrada escritura. Não responde. Parece imerso numa reflexão que escapa ao momento e às minhas dúvidas. Está realmente a perguntar-se de como será o inferno.

O livro sagrado mostra o inferno como um lugar de incandescência perpétua onde as almas serão lançadas para os lagos de enxofre. É assim que o pintor o retrata na parte superior desta obra. De facto, Cristo menciona-o constantemente, mencionando determinadas premissas, tais como o fogo que nunca se apaga, o lamento e o ranger de dentes, o castigo eterno.

Fala sem olhar para mim, como se estivesse a falar consigo próprio.

Há séculos que se considera o fogo e o gelo, ou melhor dizendo, o calor e o frio, como os sofrimentos mais atrozes num lugar de castigo eterno. Um grande poeta da antiguidade descreve uma parte do inferno com a habitual chuva de chamas, e outro segmento, é o dos traidores, formado na sua plenitude por gelo. O demónio, como regente deste espaço de perdição, está enfiado a partir da cintura na superfície gelada. Chora com os seus seis olhos e agita as suas seis asas enfurecidas.

Imagino um inferno de gelo. O Hades seria um paraíso em comparação. Uma tortura sem fim no entorpecimento perene. Mas o que o meu corpo tolera agora é o calor. Um calor intenso que se prolonga à medida que avança o ensinamento do padre Misael e que me oprime com o ar carregado pela sua aproximação, tão próximo. Reconheço as suas palavras como uma forma de sabedoria espiritual. Não quero aborrecê-lo mais com a futilidade dos meus questionamentos. Peço a sua bênção e concede-ma com grande força, depois esculpe-me um beijo sagrado na boca.

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Decidimos comer pão para o jantar, eu com um pouco de vinho e ele com um copo de sumo. Falamos à mesa sobre temas de especial interesse para ele. Olho-o nos olhos enquanto lhe explico determinadas conceções sobre sentir o Espírito Santo pulsando na palma da sua mão. Depois levo as minhas ao seu rosto. O impacto do seu corar roça a minha cara. Acaricio as suas bochechas e volto a beijá-lo, desta vez de forma profunda.

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