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Encontrei um velho amigo no mercado. Tivemos uma conversa agradável, mas breve.
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A senhora Salomé chegou enquanto estive ausente. Explica-me, em forma de justificativa, as suas penúrias. Digo-lhe que evite as preocupações, que compreendo a situação e que tire a semana de folga. Insiste em preparar o almoço de hoje como forma de compensação pela futura ausência. Não irei implorar. Fecho-me no meu quarto enquanto a senhora cozinha e tiro uma garrafa de vinho do meu lugar secreto. Começo a beber com longos goles.
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A garrafa está a metade e deixo-a sem qualquer precaução sobre a mesa de cabeceira. O vinho ingerido provoca-me uma leve sensação de tontura que pretendo expulsar com uma chávena de café. Imploro por um banho de água fria, mas a senhora Salomé diz-me que a comida está pronta. Engulo a sopa com ressentimentos. O calor acalma o vazio do meu estômago, o estranho desconforto causado pela bebida. Levanto-me da mesa olhando para o menino que come e dirijo-me aos meus aposentos com uma enorme vontade de dormir.
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Entreabro os olhos e a primeira imagem que vejo é a do mundo. A minha bebedeira não é adequada para perscrutar as delícias imundas do seu jardim. Imagino o corpo nu do menino com verdadeira luxúria e depois volto a adormecer. Quando acordo, apercebo-me de uma posição incomum do lado direito do quadro pintado. Suponho que alguém tenha revisto a pintura. A senhora Salomé está proibida de entrar nos meus aposentos e sempre foi respeitosa, portanto a minha única suspeita recai sobre a curiosidade do miúdo. Não me irrita, mas também não me agrada a sua invasão. E então, sinto a pastosidade que manchou as minhas cuecas durante o sono.
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Hoje vieram menos pessoas à igreja do que ontem. No entanto, os meus sermões foram mais extensos.
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O último livro da Bíblia anuncia um inferno repleto de fogo e enxofre como condenação para aqueles que traem as leis do Senhor. Um inferno de fetidez, de vapores fedorentos, seria um tormento insuportável, mesmo para qualquer alma alheia às debilidades do corpo. Defeco calmamente e com alguma dor. O meu esfíncter expulsa um gás em forma de um guincho agudo. Cheira mal, mas aspiro-o, imaginando um tormentoso inferno pestilento, saturado de eflúvios fedorentos e, aqui sentado, o cheiro sobreposto à imaginação incita-me à náusea. Abro um pouco da porta, permitindo que circule um pouco de ar fresco que sacuda os miasmas excrementícios, o ar viciado que contaminou o meu organismo.
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Tomás fareja-me a perna, provavelmente por ter sentido o cheiro a sabão no meu corpo após o banho. Começa a emitir grunhidos desagradáveis. Puxa-me pelo tecido do pijama e rasga-o, inundando-o com a sua baba. Cão feio. Agora vejo-o afastar-se, satisfeito com a sua brincadeira. Tiro o pijama e vejo-me nu em frente ao espelho. Não resisto a fazer uma carícia à zona dos meus testículos. Um fluxo elétrico faz-me tremer. O meu pénis incha num tom vermelho-escuro. Ao reagir, afasto-me do espelho com horror. Tiro outra roupa e tento esquecer os meus desejos.
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O Sinédrio dos sentidos acolhe com agrado a proposta de trair a alma.
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Tiro-lhe a camisa com uma serenidade que nem parece a minha. Mas são as minhas mãos que despem o seu tronco. Deito-o com o rabo virado para a minha cara, que afasto imediatamente, corando instantaneamente. Acaricio as suas costas que provavelmente estarão a queimar com o fresco do mentol. Os seus pulmões já o sentem, tenho a certeza, pois as minhas mãos esfriam ao ritmo das massagens. Contemplo pela última vez o seu rabo perfeito de jovem dominante. Volto-o com o seu rosto virado para mim. Meto o mentol sobre os seus peitorais e aproveito para apalpar os seus mamilos tímidos que emergem sem ousadia. O cheiro forte do eucalipto penetra-me.
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Esta madrugada, ambos dormem com o ruminar da chuva a açoitar a rua. Nem o Padre Misael teve o sonho da faca, nem o jovem Manuel a visão da besta. Talvez tenham desaparecido de vez. Estamos no limiar de um novo dia. No centro da cidade, a chuva arrasta todos os pivetes da rua do bilhar. A chuva forte limpa a velha árvore do pátio. Durante as chuvas, alguns ingénuos afirmam que é Deus a chorar por todos os pecados da humanidade. A imagem mais acertada não estaria simbolizada pelas lágrimas divinas que caiem sobre o mundo, mas pelo chiado da urina que nos encharca, como o de Tomás, que agora descasca a casca da velha amendoeira. De uma forma ou de outra, afinal é do corpo do Deus imaterial que provem o líquido que nos lava.
QUINTA-FEIRA
Frio e calor
Fiat voluntas tua, sicut in caelo, et in terra.
Sou sacudido por uma descarga ardente cuja génesis é o occipício e parte em êxodo destilando por toda a minha coluna dorsal. Os meus tendões despertam e obrigam-me a esticar o comprimento do meu corpo na prazerosa dor que é consumida de forma orgástica nas minhas cuecas. Sinto como o meu pénis vai descendo lentamente, derrubado pelo prazer convulsivo da poluição, enquanto na minha alma se forma um vazio que não consigo suportar. O frio desliza pela janela aberta e balança a cortina com um uivo lânguido e consecutivo. Observo como o veludo estremece sobre a parede, embate no vidro da janela, contra a moldura feita de pinheiro. Sinto a brisa deslizar e colar-se às minhas axilas, agitando-me a pele numa rajada que arrepia o meu corpo todo. Suspiro. Separo-me do interior maculado pelo sémen. Levanto-me e oro pela fraqueza do meu corpo.
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O calor do café encoraja-me a deixá-lo. Prefiro ingerir o sumo de pêssego com pequenos golos. O menino conta-me uma história um pouco profana, mas não me atrevo a repreendê-lo. Apenas olho para ele e esboço um sorriso frio. Hoje também não me fez companhia na missa e fez-me tanta falta, principalmente quando o bispo Pio deu a bênção. Observo-o e maravilho-me com as suas feições, com o seu olhar despreocupado, com o seu cabelo despenteado pela manhã. Levanto-me rapidamente da mesa, tentando desviar o olhar que continua voltado para ele, uma e outra vez.
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Tive tremores. Hoje não sairei de casa nem sequer para atender os paroquianos que estão a preparar-se para a sexta-feira Santa. Deixei alguns compromissos menores ao cargo de outrem, seguindo a recomendação do doutor. O miúdo prepara-me uma infusão que ingiro com os medicamentos. Ao voltar-se, pude notar o movimento das suas nádegas num vaivém provocador. Rendo-me ao sono.
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Vejo o rosto do rapaz ao acordar. Esteve a fazer-me companhia durante todo o tempo em que estive com febre. Diz-me que fez o almoço e conforta-me o corpo com uma sopa quente que insiste em dar-me à boca, colher atrás de colher. Mas depois vem um momento de tensão. Repreendo-o por ter examinado a pintura sem o meu consentimento e responde-me que só queria saber o que continha o quadro. Não é uma questão de proibir-lhe o conhecimento, mas considero que deveria ter consultado antes uma voz que lhe confirmasse se estava ou não capacitado para tal conhecimento. Responde-me que se sente apto e implora que o guie pelo quadro. Após uma luta de súplicas e rejeições, cedo ao pedido e permito-lhe abri-lo. Ele faz uma cara de surpresa. É lindo diz, mas horrível ao mesmo tempo.É a nossa alma, digo-lhe ou penso simplesmente. O choque residual da febre deixa-me tonto. Neste momento só me dá vontade de afastar-me do menino, de gritar com ele para que saia do meu quarto e que desapareça para sempre, que Deus me revelou que ele é um emissário do demónio. Sou invadido pela vontade de o excomungar da minha vida. Sei que farei tudo ao contrário, porque me ergo para ele e pouso uma mão sobre o seu ombro e a sustento num abraço cheio de intenções. O que estás a ver é um paraíso, um inferno, e isto aqui, digo-lhe com uma voz magnânima indicando-lhe a parte central, é o mundo. Por agora já chega! Teremos tempo para o examinar parte por parte. O meu corpo não resiste ao impulso e beijo-o na bochecha enquanto desço a mão até à fenda das suas costas. Não reage em forma de rejeição. Pede-me, inesperadamente, que lhe dê a bênção.