Seu pai, o ex-campeão do rei, um homem que comanda grande respeito, é o único homem nestes tempos, neste reino em frangalhos, a quem os homens poderiam recorrer. Na verdade, quando o antigo rei havia rendido seu reino sem oferecer resistência, foi o pai dela que as pessoas haviam pressionado a assumir o trono e liderar a luta. Com o tempo, os melhores guerreiros do antigo rei o tinham procurado, e agora, com sua força crescendo a cada dia, Volis tinha alcançado uma força que quase rivalizava com a da capital. Talvez fosse por isso, Kyra percebe, que os homens do Governador sentiam a necessidade de humilhá-los.
Em outros lugares em toda Escalon, o Lorde Governadores de Pandésia não permite que os cavaleiros se reúnam, não permitindo tais liberdades por medo de uma revolta. Mas ali, em Volis, é diferente. Ali, eles não têm escolha: eles precisam permitir aquilo, porque eles precisam dos melhores homens possíveis para manter as Chamas.
Kyra se vira e olha além das paredes, além das colinas cobertas de branco e, ao longe, no horizonte distante, mesmo através da neve, ela pode ver, por pouco, o brilho ofuscante das Chamas. A parede de fogo que protege a fronteira ocidental de Escalon, as Chamas, uma parede de fogo de cinquenta pés de profundidade e várias centenas de pés de altura, ardendo com tanta intensidade quanto sempre, iluminando a noite, seu contorno visível no horizonte e se tornando mais pronunciado à medida que a noite cai. Com quase oitenta quilômetros de largura, as chamas são a única coisa permanente entre Escalon e a nação de trolls selvagens a leste.
Mesmo assim, trolls suficientes conseguem atravessá-las a cada ano para criar o caos, e se não fosse pelos Guardiões, bravos homens de seu pai que mantinham as Chamas acesas, Escalon seria uma nação de escravos para os trolls. Os trolls, que temem a água, só podem atacar Escalon por terra, e as Chamas são a única coisa os mantém à distância. Os Guardiões montam guarda em turnos, patrulhando em rotação, e Pandésia precisa deles. Outros também estão estacionados nas Chamas – alistados, escravos e criminosos, mas os homens de seu pai, os Guardiões, são os únicos verdadeiros soldados do grupo, e os únicos que sabem como manter as Chamas.
Em troca, Pandésia permite a Volis e seus homens suas muitas pequenas liberdades, como aqueles campos de treinamento e armas de verdade – uma pequena mostra de liberdade para fazer com que ainda se sintam como guerreiros livres, mesmo que isso seja uma ilusão. Eles não são homens livres, e todos eles sabem disso. Eles vivem em um equilíbrio estranho entre liberdade e servidão que ninguém consegue tolerar.
Mas ali, pelo menos, no Portal dos Lutadores, aqueles homens são livres, como um dia tinham sido, guerreiros que ainda podem competir e treinar e aprimorar suas habilidades. Eles representam o melhor de Escalon, os melhores guerreiros que qualquer Pandésia tinha para oferecer, todos eles veteranos das Chamas – e todos eles prestando serviço lá, a um dia de viagem. Kyra não quer outra coisa a não ser juntar-se a suas fileiras; provar que é capaz, ser enviada para o posto nas Chamas para combater trolls de verdade quando eles tentassem atravessar, e ajudar a proteger o seu reino de uma invasão.
Ela sabe, é claro, que isso nunca seria permitido. Ela é muito jovem para ser elegível, e é uma menina. Não há outras meninas nas fileiras e, mesmo se houvesse, seu pai nunca permitiria isso. Seus homens, também, a tinham tratado como uma criança quando ela tinha começado a visitá-los há anos, se divertindo com a sua presença, como espectadores. Mas depois que os homens iam embora, ela tinha ficado para trás, sozinha, treinando todos os dias e noites nos campos vazios, usando as armas e os alvos deles. Eles haviam sido surpreendidos a princípio, ao chegar no dia seguinte e encontrar marcas de flechas em seus alvos, – e ainda mais surpresos quando elas estavam no centro. Mas com o tempo, eles haviam se acostumado com isso.
Kyra havia ganhado seu respeito, especialmente nas raras ocasiões em que tinha sido autorizada a se juntar a eles. Agora, dois anos depois, todos eles sabem que ela é capaz de atingir alvos que a maioria deles não consegue – e a tolerância deles em relação a ela havia se transformado em outra coisa: respeito. É claro que ela ainda não tinha lutado em batalhas, como aqueles outros homens, ela nunca tinha matado alguém, montado guarda nas Chamas, ou enfrentando um troll em uma batalha. Ela não é capaz de empunhar uma espada, um machado de batalha ou alabarda, ou lutar como aqueles homens. Ela não tem a mesma força física que eles, para sua própria tristeza.
No entanto, Kyra havia aprendido que ela tinha uma habilidade natural com duas armas, que a tornavam, apesar de seu tamanho e sexo, um adversário formidável: seu arco, e seu cajado. A primeira ela tinha aprendido naturalmente, enquanto a última ela tinha encontrado acidentalmente, luas atrás, quando ela não conseguiu levantar uma espada de duas mãos. Naquela época, os homens tinham rido de sua incapacidade para manejar a espada, e como um insulto, um deles ironicamente havia lhe dado um cajado.
"Veja se você pode levantar esta vara em vez disso!" Ele havia dito, para deleite dos outros. Kyra nunca tinha esquecido a sua vergonha naquele momento.
A princípio, os homens de seu pai tinham visto o cajado como uma piada; afinal de contas, eles a usavam apenas como uma arma de treinamento, – aqueles bravos homens que carregavam espadas e machados e alabardas de duas mãos, que poderiam cortar através de uma árvore com um único golpe. Eles consideravam aquele pedaço de madeira como um brinquedo; a arma havia dado a Kyra ainda menos respeito do que ela já tinha.
Mas ela havia transformado a piada em uma inesperada arma de vingança, uma arma a ser temida. Uma arma contra a qual muitos dos homens de seu pai agora não conseguiam se defender. Kyra tinha se surpreendido com o seu baixo peso, e ainda mais surpresa ao descobrir que ela era naturalmente boa com a arma – tão rápida que ela era capaz de desferir golpes enquanto os soldados ainda estavam levantando suas espadas. Mais do que um dos homens que a enfrentaram havia saído com hematomas à medida que, um golpe de cada vez, ela tinha conquistado seu respeito.
Kyra, através de noites intermináveis de treinamento, sozinha, havia ensinado a si mesma movimentos que deslumbravam os homens, movimentos que nenhum deles conseguia entender. Eles haviam se interessado por seu cajado, e ela lhes havia ensinado. Na mente de Kyra, seu arco e seu cajado se complementavam, cada um de igual necessidade: o arco para o combate de longa distância, e seu cajado para a luta corpo a corpo.
Kyra também tinha observado que ela possuía um dom inato que aqueles homens não tinham: ela era ágil. Ela era como um peixinho em um mar de tubarões lentos em movimento, e enquanto aqueles homens envelhecidos tinham grande poder, Kyra pode dançar ao redor deles, saltar no ar, pode pular sobre eles e cair com uma cambalhota perfeita ou em pé. E ao combinar sua agilidade com sua técnica pessoal, Kyra consegue uma combinação letal.
"O que é que ela está fazendo aqui?" diz uma voz rouca.
Kyra, em pé ao lado de Anvin e Vidar, ouve a aproximação de cavalos, e se vê Maltren se aproximar a cavalo, ladeado por alguns de seus amigos soldados, – ainda ofegante enquanto segura uma espada, recém saído dos campos de treinamento. Ele olha para ela com desdém e seu estômago fica embrulhado. De todos os homens de seu pai, Maltren é a única pessoa que não gosta dela. Ele a odiava, por algum motivo, desde a primeira vez que ele havia colocado os olhos em cima dela.