Maenza Diego - A Estrutura Da Oração стр 4.

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Uma ânsia agita o corpo do jovem. A força, que comprime e que o diafragma libera violentamente, emana dos pulmões e irrompe com dureza, deslizando grosseiramente pela língua, atravessando as cordas vocais que transformam o impulso num som rouco e turvo. A tosse materializa-se na saliva que atravessa a garganta e termina numa viagem desde a janela até ao jardim. O menino tosse prolongadamente, com pausas que mal lhe dão descanso ao ardor das amígdalas. Ao mesmo tempo, o impetuoso latido de Tomás inunda toda a casa, apesar de estar no pátio, e é possível notar que a sua vigia não foi inútil, já que deve ter detetado provavelmente algum bicho escorregadio, ou talvez se trate apenas de uma invenção dos seus sentidos envelhecidos.

*

O toque recorrente move o silêncio enquanto oiço os sapatos da senhora Salomé atrás de mim, a deslizar apressados sobre os azulejos, detendo-se no seu destino para dar lugar ao som plástico do levantar do auricular. O tilintar dos utensílios do serviço de mesa eleva-se aos ouvidos de Tomás, órgãos cansados, mas mais despertos do que o seu olfato quase perdido. Talvez esteja a exagerar e ele tenha alcançado a mesa devido ao cheiro do peixe. O menino descansa. Mastigo com cuidado a textura do alimento. A suavidade salina que me satisfaz o paladar e oiço a aniquilação de alguma espinha entre os dentes. A senhora Salomé retira os pratos. E comunica-me, muito formalmente, que hoje precisa de sair mais cedo devido a um incidente doméstico, pelo qual se deverá ausentar por alguns dias. Assinto com a cabeça num gesto confirmatório.

*

Abro o tríptico após examinar o mundo em colapso. A minha visão recai sobre o lado direito, impregnado de ilustrações complexas. Será o inferno um lugar assim tão barulhento? Questiono-me. Será um grito infinito que faz explodir o cérebro e as entranhas para depois nos incentivar a recolher os nossos restos? Ou será que todos esses instrumentos musicais tingidos na pintura carecem de sons e o silêncio infernal é o destino dos hereges? O inferno não é o doce uivo do silêncio, disso tenho a certeza, é o fluxo de crepitações que se fundem para dominar a alma. Por isso este condenado está embutido nas cordas da arpa, e este outro infeliz está sacrificado no gigante alaúde. Então penso na minha condenação e escrutino a este triste sodomita perfurado por uma flauta como o iniciador de uma grande estirpe de sofredores e é como se conseguisse escutar o seu sofrimento, como se de alguma forma enigmática a sua dor fictícia se transfigurasse em cumplicidade dentro do meu intestino e me fizesse lembrar do horrendo pecado. Contemplo o homem que é abraçado por um porco com véu de freira, e é como se me tivessem introduzido no quadro, pois sinto o fedor dos sussurros obscenos no constante ruminar perto de mim, dentro de mim. Fecho urgentemente as portas deste terrível mundo espiritual e aparece a imagem do mundo terreno, uma paisagem que me parece ainda mais horrível. Ó Mundo, estás cheio de pecado. Protege-nos, Deus. Salva-me, Deus. Preparo-me para a missa.

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Ave-maria puríssima, concebida sem pecado. Eu pequei, Padre.Conta-me os teus pecados, filha. Tive pensamentos de luxúria. Vi-o ontem à noite, quase nu, e desejei o seu corpo, desejei-o com intensidade e ardor. Isso é muito mau, Padre?

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O sacerdote escuta e reprime um suspiro de cumplicidade. É a mesma história de cada crente, parcialmente desfigurada por uma leve matiz. É o desejo. O desejo pecaminoso e repugnante. O Padre Misael, ao fim de cada ritual de natureza análoga, acrescenta com a fórmula do rigor e manifesta-a, como está a fazer agora, com a mais normal das entoações, depois de ter escutado toda a parafernália íntima que implica uma confissão do espírito. Que Deus, Pai misericordioso, que reconciliou consigo o mundo pela morte e ressurreição do seu Filho, e derramou o Espírito Santo pela remissão dos pecados, te conceda, pelo mistério da Igreja, o perdão e a paz. Eu te absolvo dos teus pecados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. No confessionário ouve-se um Amém carregado de alívio.

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Ponho-me atrás da cabeceira e agito um frasco de colónia de nardos com a qual humedeço as minhas mãos. Unjo na superfície do seu rosto e creio notar um pestanejar que é imediatamente aplacado pela força febril da febre. O menino arde. Eu também, creio, mas por outras razões. Dorme filho, que eu cuido de ti. Quase a pegar no sono, levanto-me e noto que os medicamentos atenuaram a infeção. Esfrego as mãos uma vez mais e acaricio os seus pés com o bálsamo. Dirijo-me aos meus aposentos, mais aliviado.

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Louvada seja a água benta dos nardos que untaram o teu corpo. Descansa, que amanhã te levantarás e andarás.

*

Deliro, já que vi de perto o rosto da besta, e isto só pode acontecer nos meus sonhos. É a febre. A sua baba inunda o meu corpo. Oiço a sua expiração e não tenho forças para gritar, tão pouco coragem para cuspir no seu rosto, nem sequer digo com saliva, mas com um olhar de nojo e horror. Choro, como é normal nos momentos de horror, e imploro ao céu, como é normal num crente. Manda a besta para o inferno, Senhor. Protege-me. Cuida de mim, Senhor. Sê o meu amparo. Tu, Senhor, és o meu pastor. Contigo nada me faltará. Nada nem ninguém me poderá atingir.

*

O jovem adormece finalmente, desta vez sem pesadelos, após o ataque de febre. O Padre, no seu quarto, dispõe-se a mudar o seu uniforme por uma roupa que lhe dê comodidade para descansar. Despe-se e contempla o seu corpo em frente ao espelho. Os pêlos convergem na púbis como um remoinho proveniente das coxas e do umbigo e envolvem a pélvis chegando ao epicentro da sua zona genital, que se ergue, pouco a pouco, numa poderosa ereção. Livra-me do pecado, Senhor, implora, sem sucesso. O seu desejo é maior que a sua capacidade de abstinência. Mas de repente, sente-se invadido por um impulso, por uma rajada anormal que faz alargar o seu peito num sinal de satisfação e que deprime o fluxo de sangue que a sua natureza impulsionou até o seu pénis. Agradece a Deus, veste o pijama e deixa-se cair de joelhos em frente à cama. Obrigado, Pai, apressa-se a expressar, com lágrimas de conformação varrendo as suas bochechas. Hoje os seus olhos repousarão com serenidade. Os seus ouvidos estão tensos até ao silêncio profundo da noite pacífica. Parece que Deus o escutou. Pelo menos é o que o Padre Misael insiste em acreditar.

TERÇA E QUARTA-FEIRA

Perfume e fedor

Adveniat regnum tuum.

Circula no ar, evaporando-se gradualmente, fugindo, divertindo-se e depois espreitando com timidez, voltando a manipular o meu olfato com o seu poder e com a impertinência da sua aparição. Recebo a fragrância e sinto como se os músculos do meu rosto se esticassem num sorriso de prazer. Satisfaço a minha necessidade de sentir o cheiro, infiltrado nas minhas narinas, do ar balsâmico carregado, acalmo a pressa odorífica inalando mais fundo e perco-me no suor das flores. Ao abrir os olhos, a imagem do rosto do menino junto de mim, devolve-me à realidade dos meus olfatos rotineiros, pois ao cumprimentá-lo, recebo o ar que mudou o aroma das suas bochechas para o cheiro horrível do meu hálito matinal.

*

Decidi que o menino deveria continuar de repouso, portanto, celebrei a missa sem a sua ajuda. Neste momento, a sua ausência parece-me mais tolerável. Justifiquei o movimento pendular do incensário, cujo fumo marcou a minha pele, com uma essência de resina. Agora vejo-o recostado contra o sofá, assoando o nariz num lenço caqui enquanto uma dose variada de desenhos em movimento transitam pelo ecrã. Vou para a rua, rumo ao mercado.

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