Nem que não exista respondi em tom de desafio, surpreendendo a mim mesma pela veemência com a qual falei.
Os seus lábios se curvaram num sorriso zombeteiro, depois me indicou a pequena poltrona estofada. Sente-se. Deu-me uma ordem, mais do que efetuar-me um convite. No entanto, obedeci no instante.
Não respondeu à minha pergunta, senhorita Bruno. É religiosa?
Sou crente, senhor Mc Laine confirmei em voz baixa. Porém não sou muito praticante. Aliás, não sou de forma alguma.
A Escócia é uma das poucas nações anglo-saxónica a praticar o catolicismo com um fervor e uma devoção incomparáveis. A sua ironia era inequívoca. Eu sou a exceção que confirma a regra... Não se diz assim? Digamos que acredito só em mim mesmo e naquilo que posso tocar.
Apoiou-se largamente no encosto da cadeira de rodas, batendo com a ponta dos dedos nos seus braços. Mesmo assim, não pensei, nem por um milésimo de segundo, que era vulnerável ou frágil. A sua expressão era aquela de quem escapou das chamas e não tem medo de se lançar de novo nelas, se o considerar necessário. Ou simplesmente, se tem vontade. Afastei com dificuldade os olhos do seu rosto. Era reluzente, quase perolado, um branco brilhante e polido, diferente dos rostos comuns que me rodeavam. Era exaustivo olhar para ele e também ouvir a sua hipnótica voz. Uma serpente encantadora e qualquer mulher ia ficar muito feliz de sofrer seu feitiço, a secreta magia que emanava dele, daquele rosto perfeito, do seu olhar zombeteiro.
Então, é a minha nova secretária, senhorita Bruno.
Se quiser confirmar me contratar, senhor Mc Laine disse, elevando o olhar.
Ele sorriu, ambíguo. Por que devo contratá-la? Porque não vai todos os domingos à igreja? Julga-me muito superficial se pensa que sou capaz agora de mandá-la embora ou... mantê-la aqui com base em algumas conversas.
Nem eu a conheço bastante para formular um juízo seu assim pouco lisonjeiro concordou com um sorriso. Estou consciente porém que uma profícua relação de trabalho nasce também de uma imediata simpatia, de uma primeira impressão favorável.
A sua risada foi tão inesperada a ponto de fazer-me estremecer. Com a mesma rapidez com a qual surgiu, se apagou. Fixou-me gelidamente.
Acredita realmente que é fácil encontrar empregados dispostos a se transferir para esta vila esquecida de Deus e do mundo, longe de qualquer diversão, de cada centro comercial ou discoteca? A senhorita foi a única a responder ao anúncio, senhorita Bruno.
A diversão estava em espreita, por trás do gelo dos seus olhos. Uma placa de gelo preto, partida por uma fina fissura de bom humor que aqueceu-me a alma.
Então não terei que preocupar-me com a concorrência disse, ao cruzar nervosamente as mãos no colo.
Ele me examinou ainda, com a mesma curiosidade irritante com a qual se olha um animal raro.
Engoli a saliva, ostentando uma desenvoltura fictícia e perigosamente precária. Por um instante, exatamente o tempo de formular um pensamento, disse a mim mesma que devia fugir daquela casa, daquele quarto transbordante de livros, daquele homem inquietante e belíssimo. Sentia-me como um gatinho indefeso, a poucos centímetros das garras de um leão. Predador cruel, presa impotente. Depois, a sensação esvaneceu e me considerei uma boba. Diante a mim estava um homem de personalidade exuberante, arrogante e prepotente, mas obrigado há tempo a ficar numa cadeira de rodas. Eu era a presa da vez, uma garota tímida, medrosa e relutante às mudanças. Por que não deixá-lo fazer? Se o divertia brincar comigo, por que impedir a única ocasião de diversão, de passatempo que tinha? Era quase nobre da minha parte, num certo sentido.
O que pensa de mim, senhorita Bruno?
Ainda uma vez o forcei a repetir a pergunta e mais uma vez o peguei de surpresa.
Não pensava que era tão jovem.
Endureci no momento e fiquei sem fala, com medo de machucá-lo de algum modo. Ele se recompôs e me gelou com outro dos seus sorrisos emocionantes. Mesmo?
Agitei-me na cadeira, indecisa sobre como prosseguir. Depois me decidi, ao recolher toda a minha coragem e estimulada pelo seu olhar preso ao meu, numa dança muda e não por isso menos emocionante, voltei a falar.
Bem... escreveu o seu primeiro livro vinte e cinco, quinze anos atrás, pelo que me resulta. E mesmo assim, parece um pouco mais velho que eu considerei quase como distraidamente.
Quantos anos tem, senhorita Bruno?
Vinte e dois, senhor respondi, envolvida novamente pela profundidade dos seus olhos.
Sou muito velho para si, senhorita Bruno disse com um riso silencioso. Depois abaixou o olhar e a fria noite invernal voltou a envolvê-lo entre as suas espirais, mais cruel que uma serpente. Cada vestígio de calor desapareceu. Assim, pode ficar tranquila, Não deverá temer por assédio sexual enquanto dorme na sua cama. Como vê, sou condenado à imobilidade.
Calei-me porque não sabia o que responder. O seu tom era amargurado e sem esperança, o rosto esculpido na pedra.
Os seus olhos sondaram os meus, a procura de algo que parecia não encontrar. Concedeu-se um pequeno sorriso. Ao menos, não há piedade nela. Isto me alegra. Não a quero, não preciso disso. Sou mais feliz que muitos outros, senhorita Bruno porque sou livre, completamente, do modo mais absoluto. Franziu as sobrancelhas. O que está a fazer aqui ainda? Pode ir.
O tom seco me deixou perplexa. Levantei-me incerta e ele aproveitou para desafogar sobre mim a sua cólera.
Ainda aqui? O que deseja? Já o seu salário? Ou quer falar do seu dia de folga? acusou-me irado.
Não, senhor Mc Laine. Desajeitadamente, dirigi-me à porta. A minha mão já estava sobre a maçaneta, quando me parou.
Às nove da manhã, senhorita Bruno. Estou a escrever um novo livro, o título é mortos sem sepultura. Acha muito macabro? O seu sorriso se tornou bem mais intenso.
A brusca mudança de humor devia ser um traço dominante do seu caráter. Esforcei-me para lembrar no futuro ou arriscava a ter uma crise histérica ao menos vinte vezes ao dia. Parece interessante, senhor respondi com cautela.
Virou a cabeça para trás e explodiu numa grande risada. Interessante! Aposto que nunca leu um dos meus livros, senhorita Parece-me de estômago delicado... Não ia dormir à noite, atormentada pelos pesadelos... Riu de novo, passando a tratá-la com mais intimidade com a mesma rapidez com a qual mudava de humor.
Não sou tão sensível como parece, senhor respondi modestamente, desencadeando uma outra onda de risadas.
Com as mãos manobrou a cadeira de rodas com uma habilidade felina e admirável, nascida a anos e anos de hábito e veio numa velocidade extraordinária ao meu lado. Tão próximo a tornar inútil qualquer minha tentativa de formular um pensamento racional. Instintivamente, recuei um passo. Ele fingiu não notar o meu movimento e indicou a biblioteca à minha direita.
Pegue o quarto livro à esquerda, terceira prateleira.
Obediente, peguei o livro que me indicava. O título me era familiar porque tinha feito uma busca sobre ele na Internet antes de partir, porém efetivamente nunca tinha lido nada dele. Terror não era o meu género, decididamente mais adequado a paladares fortes e inadequado ao meu, delicado e romântico.
Zumbis a caminho li em voz alta.